A Revista Veja publicou, em sua edição de número 2224, a reportagem “Madraçal no Planalto”, de autoria de Gustavo Ribeiro, sobre suposta perseguição política na Universidade de Brasília (UnB). Segundo o autor da reportagem, o ambiente acadêmico da Universidade estaria dominado por intolerância e a instituição teria se “aparelhado em prol de uma causa”. Houve alguma repercussão, mas nada significativo. Os leitores de Veja, como de hábito, satisfizeram-se, pois seu nível de exigência jornalística e capacidade de leitura reflexiva é praticamente nulo. Protestaram contra Veja diversos membros da comunidade acadêmica da UnB, entre os quais o Reitor José Geraldo, amplamente atacado na reportagem, além de professores, alunos e ex-alunos. Dessas reações surgiram alguns bons textos, como o do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UnB, na minha opinião o mais lúcido, rigoroso e emocionante de todos.
Embora relutante, resolvi escrever algumas palavras sobre a polêmica e sobre os ataques que a UnB sofreu. Senti que era meu dever, tendo em vista que me formei na instituição e hoje sou um de seus professores, embora ache que responder ao que se escreve na Veja é uma perda de tempo. Desde o início do episódio, achei que tudo deveria ser primeiro resolvido na justiça. Se a UnB não ganhar direito de resposta no próprio veículo, com o mesmo destaque do texto de Gustavo Ribeiro, as coisas ficam como estão. Ou seja, a estultice dos leitores de Veja não será confrontada à proporção que o caso exige. Amigos, conhecidos e alunos, entretanto, procuraram-me para saber sobre o que eu pensava da reportagem. Assim foi que resolvi fazer algo que não fazia há pelo menos uns dez anos: ler Veja. Tentei abastecer-me de toda a paciência do mundo e encarei “Madraçal no Planalto”.
Vamos à primeira constatação sobre o texto: o repórter de Veja escreve mal. Foi penoso terminar a leitura. Falta estilo, elegância, fluência sintática. No mínimo, faltam leitura e cultura. Como seu texto está “instrumentalizado” demais, “aparelhado” demais, tudo segue um fluxo meio instável. Isso faz com que os interesses por trás da reportagem apareçam demasiadamente, não se sustentando naturalmente, como acontece em outros veículos de imprensa não menos aparelhados ideologicamente, mas que tornam a empulhação ideológica um pouco mais sutil e elegante. O estilo de Ribeiro é uma junção de pressa com cinismo. Mas talvez esse seja o estilo preconizado no manual de redação de Veja. Já sabemos: pouca exigência intelectual dos leitores; pouca eficiência textual dos redatores. Nesse plano, o texto é vergonhoso, fruto de uma inteligência pedestre. Precisei correr para ler um pouco de poesia para me desintoxicar (isso é sério mesmo!). É escusado dizer que a reportagem é nitidamente parcial. Não se apresentam fatos concretos, apenas versões de fatos e alegações muito vagas sobre supostas perseguições a professores. Para verificar o grau de tendenciosidade, basta lembrar que dois dos ouvidos pelo repórter são derrotados no processo último processo eleitoral para a administração da Universidade.
Mas falar que uma reportagem de Veja é ruim e tendenciosa é ‘chover no molhado’. Gostaria de tocar em questões que estão em jogo quando um veículo de imprensa clara e assumidamente conservador coloca em xeque a Universidade Pública. Esse é um dos grandes debates que está por trás desse texto insignificante. A reportagem confunde a Reitoria com a Instituição. Vivo o cotidiano acadêmico da UnB e verifico que há muitos problemas nesta administração. Poderia fazer muitas críticas a ela. Todavia, lembremos, a UnB é maior que a sua atual gestão. Pelos seus campi passam milhares de pessoas, graças ao processo de democratização do ensino superior público ocorrido durante os anos do governo Lula. Fui aluno da UnB nos tristes anos 90, em que a situação acadêmica era melancólica. Hoje sou professor em uma Universidade pujante, grande, com altos índices de produção acadêmica e também inúmeros problemas, de grandes dimensões.
Falemos de “intolerância”. A intolerância, alegada na reportagem de Veja, existe eventualmente como traço do comportamento (de direita e de esquerda) de algumas pessoas na UnB, ou mesmo em qualquer outra instituição que tenha uma missão política. Às vezes, a intolerância até mesmo se confunde com boas intenções; é traço humano ser contraditório e errar. Entretanto, a intolerância política não é um elemento da ação institucional da UnB, assim como é no caso de Veja. Este é um veículo que aparelhou a intolerância. A UnB tem um compromisso político muito claro: o da democratização e o da ampliação do acesso de camadas sociais historicamente alijadas da formação superior de qualidade e gratuita. Esse é o princípio ideológico que está por trás de suas ações, as quais podem até ter o mérito ou a eficácia discutidos, como a política de cotas, o processo de avaliação seriada, o trabalho com formação de professores para a educação no campo.
A formação superior pública, gratuita e de qualidade, no Brasil, historicamente esteve garantida, de forma majoritária, a classes privilegiadas economicamente. O fato de a Universidade Pública estar cada vez mais plural, mais viva e mais democrática, incomoda aos setores conservadores brasileiros. Esse é o grande nó ideológico que está por trás da reportagem de Veja. Esse nó talvez seja inacessível ao repórter Gustavo Ribeiro, que comete o despautério de chamar a formação superior em Arquitetura de “carreira técnica”, em que, supostamente, não poderia haver interferência política. É comum ao pensamento de direita o argumento técnico, a alegação de imparcialidade, a desculpa da cisão entre o mundo da parafernália técnica e tecnológica e o mundo da ideologia. Essa cisão, é claro, não existe, especialmente numa instituição educativa. Só educa quem acredita em algo, quem tem um projeto pedagógico que é assumido como político. Adestramento para o mundo do trabalho é outra coisa, como comprova a habilidade jornalística irrisória do repórter de Veja.
A educação que a existência de uma instituição como a UnB pode promover é indispensável para um projeto de país que se deseja amplo, plural e democrático. A UnB tem muitos problemas sim, mas muitos deles, talvez a maioria deles, decorrem precisamente de sua expansão. Nossa elite conservadora é intolerante com relação a esse alcance maior do ensino superior público. Esse é o sintoma do caminhar histórico brasileiro que os ataques de Veja à UnB deixam ver. Uma Universidade com mais negros, mais índios, mais pobres e mais aberta às massas camponesas é inconcebível para Veja, para seu inexperiente repórter e para uma boa parcela da sociedade brasileira, que tende a espernear pela perda de alguns privilégios. Estejamos atentos a outros ataques que certamente virão; que venham, pelo menos, à altura de nossa exigência intelectual.
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